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domingo, 27 de abril de 2025

 

6. Sincopação, chave para a formação da música nacional.


Confesso que demorei a me decidir sobre o título desta postagem. Queria colocar em relevo o que considero mais característico de nossa música, que é a ocorrência da síncopa no DNA de nossos ritmos.

Cito Jairo Severiano uma vez mais: "... o lundu surgiu da fusão de elementos musicais de origens branca e negra, tornando-se o primeiro gênero afro-brasileiro da canção popular. Na verdade, essa interação de melodia e harmonia de inspiração europeia com a rítmica africana se constitui em um dos mais fascinantes aspectos da música brasileira. Situa-se portanto o lundu nas raízes de formação de nossos gêneros afros, processo que culminaria com a criação do samba." 

Prossegue o autor: "Submetidas desde a chegada a um processo de nacionalização, as danças importadas seriam fundidas por nossos músicos populares a formas nativas de origem africana, conhecidas pelo nome genérico de batuque."

Aqui faz-se a ligação: o mais característico em gêneros musicais como o tango brasileiro, o maxixe e o chôro (que serão abordados mais adiante) é a utilização da síncopa afro-brasileira.

Bom, após esta pequena introdução, creio-me munido de ideias para explicar o porquê de avaliar que Mário de Andrade "pegou pesado" em sua crítica ao Lundum (ver post anterior).

Entendo o Lundum como um improviso melódico feito sobre um batuque. Batuque estilizado, mas que guarda o que lhe é essencial, a repetição. Em cima dessa base repetitiva, representada por 4 semicolcheias por tempo em um compasso 2/4 e uma alternância entre tônica e dominante, a melodia apresenta (o que para o propósito do presente estudo é fundamental) um rico e variado repertório de síncopas, o que lhe propicia o "ar de brasilidade" que será desenvolvido em outros gêneros de nossa música.

Vamos a alguns exemplos:

    1. Compasso 3: o primeiro motivo já apresenta uma sincopa:


    2. Compasso 6:
    3. Compasso 8: no segundo tempo, a figura rítmica mais característica de nossos gêneros afro-brasileiros:


    4. Compasso 22:


Bom, não vou me alongar com os exemplos. As síncopas estão presentes em todo o discurso melódico. O resultado musical é, para mim, um convite à dança. 

Por este motivo, creio que a peça, despretensiosa a ponto de seu autor não se identificar, cumpre seu objetivo de retratar a gênese de nosso ritmos afro-brasileiros.

É isso.













 

     

quinta-feira, 10 de abril de 2025

 

5. Sobre Lundus


Creio haver comentado anteriormente que os lundus estão para a dança como a modinha está para a poesia. 

Tal afirmação, ainda que simplificadora, pretende estabelecer a sua importância fundamental para a música popular instrumental brasileira.

Assim com aconteceu com a modinha, o lundu tem origem populares, passa por uma fase de refinamento e erudição ao ser acolhida pelos compositores acadêmicos, e volta a popularizar-se.

No caso específico dos lundus, estes originam-se de batuques para acompanhamento de danças africanas, ganham letras e uma certa elitização por parte dos músicos acadêmicos que terminam por nos legar as partituras que conhecemos. São os chamados lundus de salão.

O lundu esteve em voga durante quase todo o século XIX no Brasil, porém praticamente desapareceu cedendo lugar ao maxixe.

A seguir, dois exemplos de Lundu.

O primeiro trata-se do popular "Lundu da Marrequinha", de autoria de Francisco Manuel da Silva. Segue um singelo arranjo para flauta e violão.


A letra é de Francisco de Paula Brito (tirem as crianças da sala!!):

Os olhos namoradores
Da engraçada Iáiásinha
Logo me fazem lembrar
Sua bella marrequinha.

Iáiá não teime,
Solte a marreca,
Senão eu morro,
Leva-me à breca.

Se dansando à Brasileira
Quebra o corpo a Iáiásinha,
Com ella brinca pulando
Sua bella marrequinha.

Iáiá não teime, etc...

Quem a vê terna e mimosa,
Pequenina e redondinha,
Não diz que conserva prêsa
Sua bella marrequinha

Iáiá não teime, etc...

Nas margens da Caqueirada,
Não há só bagre e tainha
Ali foi que ella creou
Sua bella marrequinha

Iáiá não teime, etc...

Tanto tempo sem beber...
Tão jururú... coitadinha!...
Quasi que morre de sêde
Sua bella marrequinha!...

Iáiá não teime, etc...

Bom, depois desse exemplo,  fica mais claro o que  Jairo Severiano quis dizer do lundu, "uma música alegre, de versos satíricos, maliciosos, variando bastante nos esquemas formais".

Consigo agora, aproximar-me mais do meu alvo: música instrumental popular brasileira. E volto a Mário de Andrade, que em suas Modinhas Imperiais brinda-nos com a peça seguinte, de autor anônimo e batizada Lundum. Elaborei um arranjo para nossa formação:


Sobre esta peça, Mário de Andrade foi um pouco cruel:

E’ uma deliciosíssima obrinha, pela graça amaneirada, pela boniteza legítima de algumas linhas. E até ainda ironicamente deliciosa pela falta de carácter. Não é possível a gente Imaginar um Lundum menos lundú. Nem possui o movimento coreográfico com que os escravos de Angola implantaram essa dança no Brasil e em Portugal, nem muito menos o carácter de canção urbana, de intenção mais ou menos cômica ou irônica, em que o Lundú se converteu aqui, durante o período modinheiro oitocentista. E’ um Andante legitimamente europeu, muito evocando Mozart. Porquê a mão que escreveu o Andante admirável da Sonata em Do Maior, n.° 1. vl. I da ed. Germer, na certa não repudiava a primeira estrofe dêste Lundum. Encontrei-o no álbum da “Lira Moderna” donde o transcrevo sem tirar nem por. Está claro que será aconselhável suprimir certas estrofes. 

O compositor anónimo era inspirado, sim, porém bastante esbanjador de vulgaridades também. A excessiva complacência pra consigo não lhe permitia percebê-las. E ás vezes um discreto esquecimento de partes é mais honrar que deturpar a obra dos artistas. Ter gênio não quer dizer possuir genialidade obrigatória a todo instante da vida. O caçador não depende apenas de si e do que traz consigo: depende da caça também, e certos dias neste mato não há jaó que responda.

Vocês concordam? Tendo a divergir, e explico o porquê na próxima.


terça-feira, 8 de abril de 2025

 

4. A primeira metade do século XIX


No título do capítulo "A família real, o piano e as danças de salão", Jairo Severiano resume magistralmente as forças transformadoras do nosso ambiente musical no século XIX.

"A vinda da corte (desembarque no Rio de Janeiro em 7 de março de 1808) provocou no Brasil um surto de civilização e desenvolvimento, representado por iniciativas como a criação da Academia de Belas Artes, da Biblioteca Pública, do Banco do Brasil, do Jardim Botânico e, no âmbito da música, a introdução do piano, da valsa e de outras novidades europeias".

Mas antes de me debruçar sobre estas novidades, creio ser relevante terminar nosso assunto anterior, qual seja, modinhas e lundus.

Na começo do século XIX dois "modinheiros" se destacam: Joaquim Manoel da Câmara e Cândido Inácio da Silva.

Joaquim Manoel, como era conhecido, exibiu raro talento ao violão. Não possuía, entretanto, qualquer formação musical. Seu legado musical deve-se ao músico austríaco Sigsmund Neukomm, que harmonizou vinte de suas modinhas.

Segue abaixo, arranjada para flauta e violão,  a modinha Triste Salgueiro de Joaquim Manoel da Câmara:



Triste Salgueiro,

Rama inclinada,

Folhagem pálida,

Sombra magoada,

Aceite o nome,

O nome da minha namorada,

O nome da minha namorada.


Cândido Inácio da Silva, por sua vez, foi considerado por Mário de Andrade "salvas as proporções, o Schubert de nossas modinhas de salão". Violonista, é tido como o maior autor de modinhas da primeira metade do século XIX.

Duas de suas mais famosas modinhas foram publicadas por Mário de Andrade em "Modinhas Imperiais": Busco a campina serena e Quando as glórias eu gosei.

Segue um arranjo da primeira, para nossa formação orquestral.




Busco a campina serena

Para livre suspirar

Busco a campina serena

Para livre suspirar


Cresce o mal que me atormenta

Aumenta-se o meu penar

Cresce o mal que me atormenta

Aumenta-se o meu penar


Si ao brando rio procuro

As minhas penas contar

O rio foge de ouvir-me

Aumenta-se o meu penar


Si ao terno canto de uma ave

Vou meus gemidos juntar,

Emudece o passarinho

Aumenta-se o meu penar.

Sobre esta modinha, reproduzo abaixo o que escreveu Mario de Andrade:

"Esta Modinha que é um primor de Graça perfeitíssima, foi publicada sob a.®14, na “Coleção de Modinhas Brasileiras e Portuguesas" de Filippone e Tornaghi, donde a transcrevo. Os versos não trazem nome de autor mas ainda são de bom lirismo árcade. A música é de Cândido Inácio da Silva.

Este músico, totalmente ignorado por nós, me parece estar entre as figuras mais dignas de pesquiza, da composição nacional. Porquê si não teve a audácia de se manifestar em obras musicais vultuosas, que eu saiba, nem óperas, nem missas, nem sinfonias, foi incontestavelmente um trovador da melhor inspiração. As duas Modinhas dele que transcrevo aqui, são canções admiráveis pela beleza e sentimento de linha melódica".


As modinhas foram a grande expressão romântica de nossa música a longo de todo o século XIX e seu processo de "democratização" acentuou-se no final do século. Essa popularização deve-se à progressiva troca de seu acompanhamento pianístico pelo violonístico, à adoção do ritmo ternário  e à sua simplificação formal. 

No início do século XX, entretanto, a valsa com letra começou a se popularizar no Brasil e passou a ocupar o espaço da modinha como expressão maior da canção de amor.

É isso. 

Prometi e não cumpri falar também dos lundus. 

Perdão, fica para o próximo post.




sexta-feira, 4 de abril de 2025

 

3. Ainda sobre Modinhas e Lundus


As modinhas exemplificadas no post anterior deixam claro para mim o filtro estabelecido pela música acadêmica, oficial, sobre as expressões musicais de caráter popular no século XVIII. Devemos considerar a inexistência, naquele período, de formas de registro fonográfico e a escassez, na colônia, de oportunidade de impressão e divulgação de partituras musicais. 

Assim, não consegui colher exemplos de modinhas que pudessem ser relacionadas a uma herança direta para a nossa música popular. Os exemplos existentes parecem todos revestidos de um academicismo europeu que lhes nega o caráter de brasilidade que há algum tempo fermentava.

As modinhas eram compostas geralmente em duas partes, a maioria em modo menor, em compasso binário ou quaternário. Apresentavam frequentemente linhas melódicas descendentes.

Melhor sorte também não logrei em relação aos lundus do final do século XVIII.

Bom, o lundu tem suas raízes (africanas) em danças. Citando Jairo Severiano "Originalmente uma dança sensual praticada por negros e mulatos em rodas de batuque, só tomaria a forma de canção nas décadas finais do século XVIII". E mais adiante "Num  processo semelhante ao ocorrido com a modinha , o lundu também passou a ser composto de forma elitizada por músicos de escola, chegando à posteridade quase que apenas partituras editadas a partir dessa fase. É o chamado lundu de salão.

lundu é uma música de caráter alegre, composto em compasso binário e na maioria das vezes em modo maior. Quando Jairo Severiano menciona a forma de canção assumida nas ultimas décadas do século XVIII, isto significa que "evoluindo de um batuque, o lundu ganhou "letra", com versos satíricos e maliciosos".

Mas, paciência, esperemos a virada do século.