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sábado, 26 de julho de 2025

 Passarim

Seguindo a ordem alfabética, esta é a ultima peça do repertório selecionado.

Como já abordado quando falei da Abertura, Passarim também faz parte de uma trilha sonora. No caso, para a minissérie O Tempo e o Vento, baseada na obra de Érico Veríssimo.

A composição constitui-se em perfeito exemplo da fase "ecológica" de Jobim. Sobre a letra da música, também de Jobim, encontrei esta breve análise que reproduzo parcialmente abaixo:

A canção 'Passarim' de Tom Jobim é uma obra que reflete sobre a melancolia, a perda e a busca incessante pela felicidadeA letra utiliza a metáfora de um pássaro que tenta pousar, mas é constantemente impedido, seja por tiros que o ferem ou por outros obstáculos que o fazem continuar voando.

A composição foi registrada fonograficamente em 1985 no LP O Tempo e o Vento, com a participação de Danilo Caymmi e coro.

Entretanto, o arranjo no formato proposto para nossa formação aparece no álbum Passarim, lançado em 1987 pela gravadora Polygran Discos.

Acompanham o compositor os vocais de Ana Lontra Jobim, Elizabeth Jobim, Maucha Adnet, Paula Morelenbaum, Paulo Jobim e Simone Caymmi.



https://open.spotify.com/intl-pt/track/2ILOybKqfaoqpqhRXRrnfN?si=f63e0bc9a9c14a3d

Encerro esta série de posts esperando haver disseminado o vírus de minha febre jobiniana. Não tenho vontade de me curar...

Agradeço sinceramente a atenção.


sexta-feira, 25 de julho de 2025

Olha Maria 

Vivendo e aprendendo. 

Não sabia que Olha Maria tinha "nascido" com outro nome. Pois bem, a informação consta do livro A Harmonia de Tom Jobim, de Carlos Almada, já citado previamente: 

Originalmente instrumental e intitulada Amparo, a canção que seria depois renomeada como Olha Maria foi composta em 1969 como parte da trilha sonora do filme The Adventurers, de Lewis Gilbert.

De fato, investigação adicional chegou à evidência material: LP lançado em 1970 pela Paramount Records. Sob o nome de "Dax & Amparo (Love Theme)" encontra-se a futura Olha Maria. Compartilha o berço outra composição famosa de Jobim, Chovendo na Roseira, aqui ainda batizada de Children's Game. Os arranjos e regência são de Eumir Deodato.


Na mais pura tradição de Catulo da Paixão Cearense, "Dax & Amparo (Love Theme)" foi rebatizada após receber letra em português, concebida por Vinícius de Moraes e Chico Buarque.

O primeiro registro fonográfico da agora Olha Maria aparece no LP  Construção, de Chico Buarque (1971).


Já se ouve neste álbum o arranjo que serviu de base para a orquestração que iremos executar. É muito interessante notar a diferença entre os arranjos, que diferenciam um "love theme" de um pungente testemunho do fim de uma relação amorosa.


quarta-feira, 23 de julho de 2025

 Gabriela

De maio a outubro de 1975, a TV Globo exibiu a telenovela Gabriela, adaptação do romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado.


A novela, grande sucesso de audiência, contava com Sônia Braga e Armando Bógus  como principais protagonistas. A música tema, Modinha para Gabriela, de autoria de Dorival Caymmi,  tornou-se muito popular na interpretação de Gal Costa. Abaixo, imagem do LP lançado pela Som Livre com a trilha sonora da produção.


O sucesso da novela, a sensualidade da trama, e a popularidade de Sônia Braga estimulariam a adaptação, desta vez para um filme, de outra obra literária de Jorge Amado: Dona Flor e Seus Dois Maridos. A produção de 1976, dirigida por Bruno Barreto, que assina o roteiro adaptado, contava ainda com trilha sonora de Chico Buarque e Francis Hime, da qual se destaca a composição O que será, interpretada por Simone (sobre isso não falarei mais, tendo em vista o alto risco de contágio...).

A aposta deu certo: com mais de 10 milhões de expectadores, o filme manteve-se por 34 anos como recordista de público do cinema brasileiro até ser suplantado em 2010 por Tropa de Elite (o que, para mim, ajuda a explicar os rumos de nosso país).

Cito toda essa história, com todas as referências para explicar que, em 1983, o cinema brasileiro dobrou a aposta: contando mais uma vez com a agora consagrada Sônia Braga, o diretor Bruno Barreto adapta o roteiro e dirige o filme Gabriela. A presença do astro Marcello Mastroianni no papel de Seu Nacib, par romântico de Gabriela, é claro indicador das ambições internacionais da produção.


Aqui chegamos finalmente ao ponto. Coube a Tom Jobim a trilha sonora do filme Gabriela. A gravação, pela RCA Records contou com a participação de Gal Costa e arranjos e regência de Oscar Castro Neves:


Eis as faixas da trilha sonora:

Chegada dos Retirantes

Tema de Amor de Gabriela

Pulando Carniça

Pensando na Vida

Casório

Origens

Ataque dos Jagunços

Caminho da Mata

Ilhéus

Tema de Amor de Gabriela (versão completa) 

Em 1987, contudo, Tom Jobim rearranja os temas acima e os registra no disco Passarim (Verve Records). Este arranjo é o que serviu de base para a orquestração que vamos tocar.


No arranjo, Jobim, além de apresentar os temas principais da trilha sonora de Gabriela, acrescenta outros temas, como Boto, Berimbau, e Na Corda da Viola, resultando no que avalio ser uma declaração de amor ao Brasil.



terça-feira, 22 de julho de 2025

 Falando de Amor

Falando de Amor é uma composição de 1978, com letra e música do próprio Tom.

A composição foi iniciada no Hotel Adams em Nova Iorque, onde Jobim passava lua de mel com sua segunda esposa, Ana Lontra Jobim. A informação consta de artigo no site Lyrical Brazil, baseado no livro Tom Jobim: Histórias de Canções de Wagner Homem e Luiz Roberto Oliveira.



Falando de Amor consta do álbum Miúcha 7 Tom Jobim vol. 2, de 30 de novembro de 1978.


É efetivamente uma declaração de amor e um pedido de correspondência. Um choro-canção em modo menor em forma A-B-A, conforme destacado por Carlos Almada (A Harmonia de Jobim) calcado "em uma espinha dorsal de sonoridades diminutas".

Há uma gravação do próprio Tom com arranjo muito próximo ao que vamos tocar.

https://open.spotify.com/track/3iIqvbmF2kVgRf8C9xdrKS?si=oEajTwVnTpaeInJuit_CfA

domingo, 20 de julho de 2025

Derradeira Primavera

Chegamos então à decana de nosso repertório. Derradeira Primavera foi composta em 1962 e é fruto da parceria de Tom Jobim com Vinícius de Moraes. Excelente oportunidade para comentar um pouquinho sobre esse feliz encontro para a música popular brasileira.

Tom e Vinícius foram apresentados por um amigo comum, Lúcio Rangel, em 1956. Na ocasião, Vinícius estava envolvido com a montagem de sua peça teatral Orfeu da Conceição, que havia escrito em 1954. Coube a Tom Jobim a trilha sonora, que foi gravada em 1956, em "alta-fidelidade" pela Odeon.

A capa, linda e atual, é o que é: um porta-jóias. Merece um merchandising: o álbum encontra-se disponível no Spotify, com as seguintes faixas:
  1. Ouverture (peça orquestral)*
  2. Monólogo de Orfeu (sobre a Valsa de Eurídice)
  3. Um nome de mulher 
  4. Se todos fossem iguais a você 
  5. Mulher, sempre mulher 
  6. Eu e o meu amor
  7. Lamento no morro 

*inevitável pensar em Villa-Lobos...

Bom, a partir deste início fulgurante, a parceria e a amizade Tom-Vinícius permaneceu fecunda, constituindo-se em uma das pedras fundamentais da Bossa Nova, com composições como Garota de Ipanema, Corcovado, Samba do Avião, Ela é Carioca, Insensatez, e Eu sei que vou te amar. Talvez sejam essas as composições que mais imediatamente vêm à memória quando falamos de Tom Jobim.

Mas, foco, cidadão, o assunto é Derradeira Primavera. 

Após uma introdução, digamos, alegre e ensolarada de 8 compassos alicerçada em acordes de Dó Maior com sétima maior e Ré menor com sétima, o clima se transforma, e uma atmosfera de melancolia se instala. Estamos diante do término de um relacionamento, de um lamento profundo pela perda. Letra e música unidas para a expressão de sentimento profundo de tristeza. Pungente.

Com vocês, mais uma vez, Nana Caymmi. O arranjo, conduzido por Mário Adnet é muito próximo ao que iremos executar.

https://youtu.be/nkapOU-Cu7g

CQD


 

sábado, 19 de julho de 2025

Chora Coração

Continuando em ordem alfabética, Chora Coração é também uma composição integrante de uma trilha sonora. Neste caso, de um filme: A Casa Assassinada, dirigido por Paulo Cesar Saraceni em 1971. 

O roteiro do filme é uma adaptação do livro Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso.


Sobre Chora Coração e toda a trilha sonora de A Casa Assassinada encontrei um artigo maravilhoso de autoria de Ney Costa Santos, coordenador do curso de cinema da PUC/Rio. 

Destaco alguns trechos, o que não dispensa a leitura do texto integral:

Para expressar a intensidade emocional do romance e de sua adaptação para o cinema, Tom Jobim trabalhou as variações de uma melodia que tem um lirismo bem brasileiro, talvez hoje perdido, mas que bem expressa o pathos emocional que atravessa o livro e o filme. Tom partiu do tema do schottisch Iara, um tipo de polca mais lenta e dançante, composta pelo maestro Anacleto de Medeiros. Anacleto foi um notável músico popular brasileiro, compositor de valsas, choros, polcas e peças sinfônicas para a banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, organizada e dirigida por ele. A música foi composta para homenagear a guarnição do barco Iara, vencedor de uma prova na regata de São Roque, em Paquetá, em 15 de novembro de 1896. Anos depois a melodia ganhou uma letra gongórica e ultrarromântica de Catulo da Paixão Cearense, foi gravada por vários cantores na primeira metade do século passado e ficou conhecida como Rasga Coração. 

Anos mais tarde, Heitor Villa Lobos utilizou o tema principal de Iara/Rasga Coração para costurar a exuberante orquestração do Choro nº 10 para orquestra e coro. É intensamente belo o resultado sonoro obtido com a melodia singela de Anacleto, passeando entre as massas sonoras e o ritmo pulsante. Mais uma vez, Villa Lobos revela sua capacidade de representar algo intraduzível em palavras, algo que poderíamos chamar de alma do Brasil profundo, ou aquilo que o pesquisador Irineu Guerrini Junior chamou de “alegoria sonora da Pátria”, comentando o uso da música de Villa nos filmes do Cinema Novo.

Na Casa Assassinada, Tom Jobim partiu do tema de Anacleto e trabalhou variações e desenvolvimentos. A música é logo apresentada nos créditos iniciais do filme, porém em uma versão diferente daquela que, em 1973, com letra de Vinicius de Morais, Tom Jobim gravou nos Estados Unidos, mantendo a fidelidade emocional ao texto de Lucio Cardoso e ao filme de Saraceni. 

A música escrita por Tom Jobim para a Casa Assassinada vai além da funcionalidade da música para cinema. O tema principal é muito mais que o comentário de cenas ou personagens. É um milagre, como o canteiro de violetas entre a fogueira das paixões que consomem a casa e os personagens e a delicadeza do perfume das flores no jardim abandonado.

Resta pouco a acrescentar. A suíte Casa Abandonada consta de quatro composições: Trem para Cordisburgo, Chora Coração, Milagre e Palhaços, e Jardim Abandonado. Foi registrada no LP Matita Perê, de 1972, com arranjo de Claus Ogerman.


Um último comentário: é imediata a associação de Trem para Cordisburgo com o Trenzinho do Caipira de Villa-Lobos.




 

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Chanson pour Michelle 


A trilha sonora da série de TV "O Tempo e o Vento" foi lançada em LP (lembram?) em 1985 e em CD em 2003.

No LP constam seis temas de Jobim, concebidos para a série: Passarim (com sua maravilhosa Abertura); Chanson pour Michelle; Rodrigo, Meu Capitão; Um certo Capitão Rodrigo; Bangzália; e Senhora Dona Bibiana.

Destes temas, dois são instrumentais: Bangzália e Chanson pour Michelle.

As demais composições tem letra atribuída ao próprio Tom (que era um grande letrista) e a Ronaldo Bastos, que assina Rodrigo, Meu Capitão e Senhora Dona Bibiana.

Chanson pour Michelle é uma canção de amor extremamente sedutora. Confesso que não consegui relacioná-la diretamente ao enredo de Érico Veríssimo. Mas incorporei-a ao meu enredo. E graças a este post e às pesquisas a ele relacionadas, fiz uma feliz descoberta ontem: a letra de Chanson pour Michelle, de autoria de Ronaldo Bastos, que transcrevi a partir da magistral interpretação de Nana Caymmi, constante do CD Falando de Amor, lançado em 2005.




Se puderem escutar, recomendo enfaticamente.

Eis a letra de Chanson pour Michelle (agradeço a ajuda de ma reine Valerie):

Tiens, ma belle

A canção que agora tens, Michelle,

Reconheço que eu roubei de ti

Só confesso porque tanto faz

Esconder

O que é

Bem mais claro do que a luz do céu

De Paris,

Viens, ma reine,

Toma o que é teu


Mil perdões

Se não deu pra te fazer feliz


O que é

Indizível mas se quer dizer

As canções

Têm o dom

De poder em rimas traduzir

Então mirar além da rima

Arriscar a ser preciso

Apostar que é possível

Remover montanhas


Cette chanson qui prends ton nom

Ma belle

Reconheço que eu roubei de ti

Aprendi a te chamar assim

E quem sabe um dia vens pra mim


Viens, Michelle,

Toma o que é só teu

De mais ninguém


Só teu de mais ninguém

Só teu de mais ninguém

Só teu de mais ninguém



Que coisa bonita.






quinta-feira, 17 de julho de 2025

 Abertura

Antes de iniciar os comentários sobre cada uma das peças escolhidas, cabe fazer uma propaganda. A fonte principal de todo o material que utilizei para os arranjos é o site do Instituto Antonio Carlos Jobim, jobim.org.

Os arranjos constantes do Cancioneiro Jobim, citado no post anterior, encontram-se todos no Acervo Jobim. Há outros acervos no site: Dorival Caymmi, Milton Nascimento, Paulo Moura, Chico Buarque, Gilberto Gil e Marieta Severo. Alto risco de contágio...

Bom, vamos falar da Abertura.

Os mais experimentados pelos anos (ufa...) devem lembrar da série de TV "O Tempo e o Vento", exibida em 26 capítulos de 22 de abril a 31 de maio de 1985. O tema de abertura da série e de cada chamada na programação era exatamente este.

A série é baseada na obra literária homônima do imortal (não da ABL...) Érico Veríssimo.

A trilha sonora da série foi gravada no álbum cuja imagem segue abaixo.




Encontrei o manuscrito abaixo no site do Instituto Jobim:




De acordo com o manuscrito, o tema, em 18 compassos 3/4 seria a introdução para a composição Passarim. Porém, ao pesquisar o arranjo feito por Paulo Jobim para Passarim, descobri que a "Abertura" havia sido deslocada para o final da exposição do tema principal, preparando sua repetição, constituindo a famosa "casa 1".

Bom, o que fazer?

Segui o coração. Tenho uma admiração profunda pelo tema da "Abertura". Avalio-a como um portal, um pórtico que nos permite vislumbrar um mundo de magia, o universo musical de Jobim. Assim, destaquei a peça para que esta sirva de abertura de nossa apresentação, a chave para o reino mágico. E preservei a estrutura do arranjo do Paulo Jobim. 

Desta maneira ouviremos o tema cromático descendente em terças por duas vezes durante nossa apresentação: no início e no seio de Passarim. Nunca é demais!

quarta-feira, 16 de julho de 2025

 Jobim: uma antecipação 

Antes de mais nada, devo desculpas por minha ausência nos últimos dias e pela interrupção da série de posts sobre a história da música popular brasileira. Prometo retomá-la em breve.


A justificativa para meu silêncio é que fui acometido de certa febre “jobiniana”. O contágio ocorreu ao rever antigos arranjos que havia elaborado ao longo dos últimos anos. Deu vontade de revisá-los, ampliá-los, adaptá-los à nossa atual formação instrumental e (já viu, não é?), acabei abraçado com oito arranjos que espero trabalhar com os amigos.


Em minha defesa, alego que trabalhar com a obra de Jobim, embora seja cronologicamente uma antecipação, não se caracteriza como uma mudança de assunto. Com efeito, Antonio Carlos Jobim figura com merecidíssimo destaque na história da música popular brasileira.


Preparei o texto abaixo para constar do folheto relativo à apresentação dos arranjos elaborados:



Lançado em 2006, o “Cancioneiro Jobim” é uma publicação em dois volumes que apresenta uma seleção das obras escolhidas de Antonio Carlos Jobim, incluindo arranjos para piano e uma biografia do compositor.


O projeto foi concebido pelo próprio Jobim e por seu filho Paulo Jobim. De acordo com a publicação, a trajetória criativa do compositor é segmentada em cinco fases.


A primeira fase (1947-1958) é principalmente formada por sambas-canções, em geral composições mais simples em comparação com obras posteriores.


A segunda fase (1959-1965) inicia-se com sua fecunda amizade com Vinícius de Moraes e é conhecida como a fase da bossa-nova, caracterizada por composições como Desafinado, Garota de Ipanema, Samba de uma nota só, Corcovado e outras, dentre as quais Derradeira Primavera.


No período seguinte (1966-1970), vivendo a maior parte em Nova Iorque e Los Angeles, Jobim inicia um afastamento da estética bossa-novista, assimilando influências do jazz e do blues. Pertence a esta fase Olha Maria.


De volta ao Brasil, Jobim experimenta fase de maior maturidade criativa (1971-1982). Suas composições adquirem certo sotaque villalobiano, com crescente interesse por temáticas ligadas à natureza e às questões ecológicas. São deste período Chora Coração e Falando de Amor.


A última fase (1983-1994) pode ser descrita como uma síntese da trajetória do compositor, na qual estéticas precedentes são revisitadas e recombinadas em novas experimentações. Gabriela, Passarim e O tempo e o Vento (Chanson pour Michelle) exemplificam este momento.


Texto-base: Almada, Carlos, A Harmonia de Jobim, Editora Unicamp, 2022.



Mas gostaria de comentar um pouco mais a respeito de cada peça que trabalhei e do porquê da escolha. É o que pretendo fazer nos próximos posts.


quinta-feira, 15 de maio de 2025

 

7. Novos gêneros musicais: a vinda da família imperial


Bom, retomemos nossa conversa.

Estamos no início do século XIX e o grande evento de nossa história é sem dúvida a vinda da família real, em destemida fuga das tropas napoleônicas.

O ano é 1808. Recorro a Jairo Severiano: "A vinda da corte provocou no Brasil um surto de civilização e desenvolvimento como a criação da Academia de Belas Artes, da Biblioteca Pública, do Banco do Brasil, do Jardim Botânico e, no âmbito da música, a introdução do piano, da valsa e de outras novidades europeias". 

O império do piano.

O piano foi inventado em 1711 por Bartolomeu Cristofori, sob a denominação "gravecembalo col piano e forte". Era a intenção de seu criador aperfeiçoar o cravo, facultando-lhe a produção de sonoridades fracas (piano) e intensas(forte).

Os primeiros pianos chegaram ao Brasil na bagagem da família imperial. A partir do final da década de 1820 começaram no Brasil a impressão musical e a venda de pianos. O piano tornou-se presença obrigatória nas salas das famílias de posses, símbolo de status social e bom gosto. Seu reinado durou até cerca de 1930, quando a expansão e popularização do rádio e a diminuição dos espaços domésticos, levaram à sua gradual substituição pelo violão, mais barato e menos "espaçoso".

Novas danças europeias.

Com a Família Real, uma série de danças europeias aporta em nossos trópicos: minueto, gavota, solo inglês, valsa e contradança (e seus derivados cotillon, quadrilha e lanceiro).

De todas estas danças, vingaram no Brasil a valsa e a quadrilha.

Sobre a valsa voltarei a falar mais adiante, dado seu lugar de destaque como gênero musical em nossa música popular e erudita.

Quanto à quadrilha, cabe aqui uma estória deliciosa em duas partes.

A quadrilha, de origem francesa, era a dança que abria os bailes da corte. Seu prestígio está ligado diretamente à monarquia. Com a quada da monarquia, a quadrilha sai de moda e troca os salões aristocráticos pelos terreiros juninos, acaipirando-se.

Mas vamos à primeira parte da estória. Por volta de 1850, um sapateiro português, José Nogueira de Azevedo Paredes, saudoso dos costumes de sua terrinha, propõe a alguns conterrâneos, em uma segunda-feira de carnaval, que saiam tocando bombos e tambores pelo centro do Rio de Janeiro. O desfile realizou-se com grande algazarra e vivas a um tal Zé Pereira, que poderia ser o próprio Zé Nogueira. O desfile tornou-se tradição, repetindo-se nos anos seguintes.

Anos depois (segunda parte), em 1869, a folia de Zé Nogueira inspirou o ator Francisco Correia Vasques a reproduzi-la num entreato cômico intitulado O Zé Pereira carnavalesco. Para tanto tomou "emprestada" uma cançoneta de Antonin Louis que constava da quadrilha "Les Pompiers de Nanterre" de L. C. Desormes. A quadrilha estava em cartaz no Teatro Lírico Francês. 


E viva o Zé Pereira,
Viva o Zé Pereira,
Viva o Zé Pereira
Que a ninguém faz mal,
E viva a bebedeira,
Viva a bebedeira,
Viva a bebedeira
Nos dias de carnaval 




domingo, 27 de abril de 2025

 

6. Sincopação, chave para a formação da música nacional.


Confesso que demorei a me decidir sobre o título desta postagem. Queria colocar em relevo o que considero mais característico de nossa música, que é a ocorrência da síncopa no DNA de nossos ritmos.

Cito Jairo Severiano uma vez mais: "... o lundu surgiu da fusão de elementos musicais de origens branca e negra, tornando-se o primeiro gênero afro-brasileiro da canção popular. Na verdade, essa interação de melodia e harmonia de inspiração europeia com a rítmica africana se constitui em um dos mais fascinantes aspectos da música brasileira. Situa-se portanto o lundu nas raízes de formação de nossos gêneros afros, processo que culminaria com a criação do samba." 

Prossegue o autor: "Submetidas desde a chegada a um processo de nacionalização, as danças importadas seriam fundidas por nossos músicos populares a formas nativas de origem africana, conhecidas pelo nome genérico de batuque."

Aqui faz-se a ligação: o mais característico em gêneros musicais como o tango brasileiro, o maxixe e o chôro (que serão abordados mais adiante) é a utilização da síncopa afro-brasileira.

Bom, após esta pequena introdução, creio-me munido de ideias para explicar o porquê de avaliar que Mário de Andrade "pegou pesado" em sua crítica ao Lundum (ver post anterior).

Entendo o Lundum como um improviso melódico feito sobre um batuque. Batuque estilizado, mas que guarda o que lhe é essencial, a repetição. Em cima dessa base repetitiva, representada por 4 semicolcheias por tempo em um compasso 2/4 e uma alternância entre tônica e dominante, a melodia apresenta (o que para o propósito do presente estudo é fundamental) um rico e variado repertório de síncopas, o que lhe propicia o "ar de brasilidade" que será desenvolvido em outros gêneros de nossa música.

Vamos a alguns exemplos:

    1. Compasso 3: o primeiro motivo já apresenta uma sincopa:


    2. Compasso 6:
    3. Compasso 8: no segundo tempo, a figura rítmica mais característica de nossos gêneros afro-brasileiros:


    4. Compasso 22:


Bom, não vou me alongar com os exemplos. As síncopas estão presentes em todo o discurso melódico. O resultado musical é, para mim, um convite à dança. 

Por este motivo, creio que a peça, despretensiosa a ponto de seu autor não se identificar, cumpre seu objetivo de retratar a gênese de nosso ritmos afro-brasileiros.

É isso.













 

     

quinta-feira, 10 de abril de 2025

 

5. Sobre Lundus


Creio haver comentado anteriormente que os lundus estão para a dança como a modinha está para a poesia. 

Tal afirmação, ainda que simplificadora, pretende estabelecer a sua importância fundamental para a música popular instrumental brasileira.

Assim com aconteceu com a modinha, o lundu tem origem populares, passa por uma fase de refinamento e erudição ao ser acolhida pelos compositores acadêmicos, e volta a popularizar-se.

No caso específico dos lundus, estes originam-se de batuques para acompanhamento de danças africanas, ganham letras e uma certa elitização por parte dos músicos acadêmicos que terminam por nos legar as partituras que conhecemos. São os chamados lundus de salão.

O lundu esteve em voga durante quase todo o século XIX no Brasil, porém praticamente desapareceu cedendo lugar ao maxixe.

A seguir, dois exemplos de Lundu.

O primeiro trata-se do popular "Lundu da Marrequinha", de autoria de Francisco Manuel da Silva. Segue um singelo arranjo para flauta e violão.


A letra é de Francisco de Paula Brito (tirem as crianças da sala!!):

Os olhos namoradores
Da engraçada Iáiásinha
Logo me fazem lembrar
Sua bella marrequinha.

Iáiá não teime,
Solte a marreca,
Senão eu morro,
Leva-me à breca.

Se dansando à Brasileira
Quebra o corpo a Iáiásinha,
Com ella brinca pulando
Sua bella marrequinha.

Iáiá não teime, etc...

Quem a vê terna e mimosa,
Pequenina e redondinha,
Não diz que conserva prêsa
Sua bella marrequinha

Iáiá não teime, etc...

Nas margens da Caqueirada,
Não há só bagre e tainha
Ali foi que ella creou
Sua bella marrequinha

Iáiá não teime, etc...

Tanto tempo sem beber...
Tão jururú... coitadinha!...
Quasi que morre de sêde
Sua bella marrequinha!...

Iáiá não teime, etc...

Bom, depois desse exemplo,  fica mais claro o que  Jairo Severiano quis dizer do lundu, "uma música alegre, de versos satíricos, maliciosos, variando bastante nos esquemas formais".

Consigo agora, aproximar-me mais do meu alvo: música instrumental popular brasileira. E volto a Mário de Andrade, que em suas Modinhas Imperiais brinda-nos com a peça seguinte, de autor anônimo e batizada Lundum. Elaborei um arranjo para nossa formação:


Sobre esta peça, Mário de Andrade foi um pouco cruel:

E’ uma deliciosíssima obrinha, pela graça amaneirada, pela boniteza legítima de algumas linhas. E até ainda ironicamente deliciosa pela falta de carácter. Não é possível a gente Imaginar um Lundum menos lundú. Nem possui o movimento coreográfico com que os escravos de Angola implantaram essa dança no Brasil e em Portugal, nem muito menos o carácter de canção urbana, de intenção mais ou menos cômica ou irônica, em que o Lundú se converteu aqui, durante o período modinheiro oitocentista. E’ um Andante legitimamente europeu, muito evocando Mozart. Porquê a mão que escreveu o Andante admirável da Sonata em Do Maior, n.° 1. vl. I da ed. Germer, na certa não repudiava a primeira estrofe dêste Lundum. Encontrei-o no álbum da “Lira Moderna” donde o transcrevo sem tirar nem por. Está claro que será aconselhável suprimir certas estrofes. 

O compositor anónimo era inspirado, sim, porém bastante esbanjador de vulgaridades também. A excessiva complacência pra consigo não lhe permitia percebê-las. E ás vezes um discreto esquecimento de partes é mais honrar que deturpar a obra dos artistas. Ter gênio não quer dizer possuir genialidade obrigatória a todo instante da vida. O caçador não depende apenas de si e do que traz consigo: depende da caça também, e certos dias neste mato não há jaó que responda.

Vocês concordam? Tendo a divergir, e explico o porquê na próxima.


terça-feira, 8 de abril de 2025

 

4. A primeira metade do século XIX


No título do capítulo "A família real, o piano e as danças de salão", Jairo Severiano resume magistralmente as forças transformadoras do nosso ambiente musical no século XIX.

"A vinda da corte (desembarque no Rio de Janeiro em 7 de março de 1808) provocou no Brasil um surto de civilização e desenvolvimento, representado por iniciativas como a criação da Academia de Belas Artes, da Biblioteca Pública, do Banco do Brasil, do Jardim Botânico e, no âmbito da música, a introdução do piano, da valsa e de outras novidades europeias".

Mas antes de me debruçar sobre estas novidades, creio ser relevante terminar nosso assunto anterior, qual seja, modinhas e lundus.

Na começo do século XIX dois "modinheiros" se destacam: Joaquim Manoel da Câmara e Cândido Inácio da Silva.

Joaquim Manoel, como era conhecido, exibiu raro talento ao violão. Não possuía, entretanto, qualquer formação musical. Seu legado musical deve-se ao músico austríaco Sigsmund Neukomm, que harmonizou vinte de suas modinhas.

Segue abaixo, arranjada para flauta e violão,  a modinha Triste Salgueiro de Joaquim Manoel da Câmara:



Triste Salgueiro,

Rama inclinada,

Folhagem pálida,

Sombra magoada,

Aceite o nome,

O nome da minha namorada,

O nome da minha namorada.


Cândido Inácio da Silva, por sua vez, foi considerado por Mário de Andrade "salvas as proporções, o Schubert de nossas modinhas de salão". Violonista, é tido como o maior autor de modinhas da primeira metade do século XIX.

Duas de suas mais famosas modinhas foram publicadas por Mário de Andrade em "Modinhas Imperiais": Busco a campina serena e Quando as glórias eu gosei.

Segue um arranjo da primeira, para nossa formação orquestral.




Busco a campina serena

Para livre suspirar

Busco a campina serena

Para livre suspirar


Cresce o mal que me atormenta

Aumenta-se o meu penar

Cresce o mal que me atormenta

Aumenta-se o meu penar


Si ao brando rio procuro

As minhas penas contar

O rio foge de ouvir-me

Aumenta-se o meu penar


Si ao terno canto de uma ave

Vou meus gemidos juntar,

Emudece o passarinho

Aumenta-se o meu penar.

Sobre esta modinha, reproduzo abaixo o que escreveu Mario de Andrade:

"Esta Modinha que é um primor de Graça perfeitíssima, foi publicada sob a.®14, na “Coleção de Modinhas Brasileiras e Portuguesas" de Filippone e Tornaghi, donde a transcrevo. Os versos não trazem nome de autor mas ainda são de bom lirismo árcade. A música é de Cândido Inácio da Silva.

Este músico, totalmente ignorado por nós, me parece estar entre as figuras mais dignas de pesquiza, da composição nacional. Porquê si não teve a audácia de se manifestar em obras musicais vultuosas, que eu saiba, nem óperas, nem missas, nem sinfonias, foi incontestavelmente um trovador da melhor inspiração. As duas Modinhas dele que transcrevo aqui, são canções admiráveis pela beleza e sentimento de linha melódica".


As modinhas foram a grande expressão romântica de nossa música a longo de todo o século XIX e seu processo de "democratização" acentuou-se no final do século. Essa popularização deve-se à progressiva troca de seu acompanhamento pianístico pelo violonístico, à adoção do ritmo ternário  e à sua simplificação formal. 

No início do século XX, entretanto, a valsa com letra começou a se popularizar no Brasil e passou a ocupar o espaço da modinha como expressão maior da canção de amor.

É isso. 

Prometi e não cumpri falar também dos lundus. 

Perdão, fica para o próximo post.




sexta-feira, 4 de abril de 2025

 

3. Ainda sobre Modinhas e Lundus


As modinhas exemplificadas no post anterior deixam claro para mim o filtro estabelecido pela música acadêmica, oficial, sobre as expressões musicais de caráter popular no século XVIII. Devemos considerar a inexistência, naquele período, de formas de registro fonográfico e a escassez, na colônia, de oportunidade de impressão e divulgação de partituras musicais. 

Assim, não consegui colher exemplos de modinhas que pudessem ser relacionadas a uma herança direta para a nossa música popular. Os exemplos existentes parecem todos revestidos de um academicismo europeu que lhes nega o caráter de brasilidade que há algum tempo fermentava.

As modinhas eram compostas geralmente em duas partes, a maioria em modo menor, em compasso binário ou quaternário. Apresentavam frequentemente linhas melódicas descendentes.

Melhor sorte também não logrei em relação aos lundus do final do século XVIII.

Bom, o lundu tem suas raízes (africanas) em danças. Citando Jairo Severiano "Originalmente uma dança sensual praticada por negros e mulatos em rodas de batuque, só tomaria a forma de canção nas décadas finais do século XVIII". E mais adiante "Num  processo semelhante ao ocorrido com a modinha , o lundu também passou a ser composto de forma elitizada por músicos de escola, chegando à posteridade quase que apenas partituras editadas a partir dessa fase. É o chamado lundu de salão.

lundu é uma música de caráter alegre, composto em compasso binário e na maioria das vezes em modo maior. Quando Jairo Severiano menciona a forma de canção assumida nas ultimas décadas do século XVIII, isto significa que "evoluindo de um batuque, o lundu ganhou "letra", com versos satíricos e maliciosos".

Mas, paciência, esperemos a virada do século.

sexta-feira, 28 de março de 2025

 

2. Modinhas e Lundus: Domingos Caldas Barbosa


Onde estávamos?


Ah, sim, no início.


Logicamente a história da música popular brasileira deveria ter início ao primeiro assobio de um marujo português ao desembarcar nestes trópicos. Mas a documentação destes fatos acaba por limitar o horizonte temporal.


Assim, inicia-se a história de uma música popular brasileira com a figura de Domingos Caldas Barbosa (1740 – 1800). Nascido no Brasil, viveu a partir de seus 22 anos em Portugal.

Domingos Caldas Barbosa.jpeg


E cabe aqui apontar, logo de cara, uma aparente contradição. Comentei no texto anterior que iria me ater à história da música instrumental brasileira, e inicio com o nome de um poeta. De fato, nenhuma melodia de Caldas Barbosa chegou a nossos dias, somente seus poemas.


As principais “letras” de Caldas Barbosa foram reunidas e publicadas em uma obra intitulada Viola de Lereno.

Viola de Lereno.jpeg

Há referências ao poeta cantando modinhas e lundus para a corte de D. Maria I, se acompanhando à Viola de Arame. Também há notícias de que tenha musicado boa parte de seus poemas, mas tal qual o assobio do marujo português, restam soterradas pela areia do tempo suas notas musicais (essa foi dura…).

Desse material, 4 modinhas foram musicadas pelo músico português Marcos Portugal. 

Uma das Modinhas musicadas por Marcos Portugal é “Você trata amor em brinco”. Creio que fala de alguém que brinca com os sentimentos de outra pessoa.


Acho a letra “bem-comportada” e a música “bem acadêmica”, sem exibir características de brasilidade.


Resta a peculiaridade de ser uma música feita por um português residente no Brasil, com letra de um brasileiro residente em Portugal. Segue o arranjo para a nossa atual formação orquestral:





Você trata amor em brinco,
Amor a fará chorar.
Veja lá com quem se mete,
Que não é para brincar,
Ai! Amor! Amor! Amor!
Vocês zombam com Amor
E não é para zombar.
Amor vem manso, mansinho,
No coração habitar
E depois de estar de dentro,
Quer só ele as regras dar.
Ai! Amor! Amor! Amor!
Vocês zombam com Amor
E não é para zombar.


Encontrei outra modinha “atribuída” a Domingos Caldas Barbosa. Chama-se Se fores ao fim do mundo”.


Segue o arranjo:



Se fores ao fim do mundo
Lá mesmo te hei de buscar
Lá mesmo te hei de buscar
Em qualquer parte que estejas
Eu sem ti não posso estar
Eu sem ti não posso estar
Eu sem ti não posso estar
Eu sem ti não posso estar


Novamente música e letra "bem comportadas”, acadêmicas. O povo escutava, ideias fermentavam…

A propósito, da próxima vez, falo um pouco a respeito do lundu.